Escritores resgatam folclore brasileiro e renovam romances de época
- O Globo
- 2 de set. de 2017
- 4 min de leitura
Obras misturam narrativas históricas com ficção científica, fantasia e aventura

Os personagens Gerard van Oost e Oludara na ilustração de Jonathan ‘Jay’ Beard; ao lado, a partir da esquerda, Samir Machado de Machado, Enéias Tavares e Christopher Kastensmidt - Jonathan ‘Jay’ Beard / Divulgação
RIO — Saci-Pererê, Boitatá, Capelobo e outros seres míticos cruzam com nativos e colonizadores numa aventura pelo Brasil Colônia. Soldados do século XVIII enfrentam labirintos e assombrações em meio às Guerras Guaraníticas. Isaías Caminha, Simão Bacamarte, Vitória Acauã e outros personagens da literatura brasileira clássica se reúnem em um cenário urbano pós-abolição para desvendar o desaparecimento de um cientista acusado de assassinatos. As tramas dos escritores Christopher Kastensmidt, Samir Machado de Machado e Enéias Tavares seguem uma vertente cada vez mais em voga do romance de época nacional: misturar História e ficção fantástica, dando destaque a elementos do folclore nacional.
Os três têm presença confirmada na programação da 18ª Bienal do Livro do Rio. Tavares e Kastensmidt falam sobre suas experiências com a cultura brasileira na mesa “Sacis, lobisomens e os monstros da ficção brasileira!”, que acontece nesta terça, às 15h30m, no espaço Geek & Quadrinhos (Pavilhão 4). Já Machado participa da mesa “Literatura e História”, com Mary Del Priore, Alberto Mussa e Fabiano Costa Coelho, na quarta, às 19h30m, dentro da programação do Café Literário (Pavilhão 3). Ele também relança no Rio o seu “Quatro soldados”, um dos romances históricos mais elogiados dos últimos anos, na terça, a partir das 19h, na Livraria da Travessa (Rua Voluntários da Pátria, 97, Botafogo). Originalmente publicado pela Não Editora em 2013, o livro acaba de ganhar uma nova edição da Rocco.
— Há uma tendência pós-Monteiro Lobato de retrabalhar o folclore brasileiro — opina Machado, também autor de “Homens elegantes” (Rocco), uma aventura de capa e espada LGBT. — Eu diria que é um potencial pop a ser renovado, resgatado dos limites da cultura infantil a que ficou confinado, e ressignificado como materialização de medos coletivos.
POTENCIAL POP
Desde 2007, Machado é editor da coleção “Ficção de polpa”, que publica contos de gêneros como terror, fantasia e ficção científica. Em “Quatro soldados”, porém, ele faz um mergulho no instável Brasil do século XVIII, com personagens tão perdidos quanto o projeto de nação do período. O território em que se movem os soldados do título é assombrado por forças estranhas, que os fazem passar pelas mais duras provas.
O autor levou oito anos para terminar o romance, pesquisando em dicionários do século XVIII para criar uma estética que se aproximasse do português falado na época. Unindo rigor histórico e narrativa aventuresca, volta-se tanto para estudiosos do passado quanto para jogadores de RPG.
— Escrevi o livro com a ideia de rever o folclore dentro de um contexto mais realista, de romance histórico — diz Machado. — O que me fez partir para uma abordagem mais próxima de criptozoologia. Foi um jeito de encontrar uma forma nova de olhar para isso.
Nascido nos Estados Unidos, mas radicado em Porto Alegre, Kastensmidt foi finalista do Prêmio Nebula (espécie de Oscar da literatura fantástica) com “O encontro fortuito de Gerard van Oost e Oludara”, primeira história de uma série ambientada no século XVI. Por meio da improvável amizade entre um explorador holandês e um guerreiro iorubá trazido ao Brasil contra a sua vontade, ele revisita a magia e os mistérios do nosso folclore, povoado por criaturas como Saci-Pererê, Boitatá, Pai do Mato, Capelobo, Mapinguari etc.
A saga de Oost e Oludara já virou um romance, uma HQ (com arte de Carolina Mylius e Ursula Dorada), e agora deverá ser transformada pelo autor em um jogo de tabuleiro e um RPG de mesa, no estilo “Dungeons & Dragons”. Samir Machado de Machado, que já trabalhou com Kastensmidt em um dos volumes da “Ficção de polpa”, define o projeto do colega como “um dos bestiários de folclore nacional mais completos desde Câmara Cascudo”. Rigoroso em sua pesquisa histórica, Kastensmidt calcula ter consultado mais de 200 livros.
— Trabalho com Brasil Colônia, que não é a época mais comum para fantasia histórica, mas que tem seus adeptos, como Walter Tierno e Marcus Achiles — explica o autor. — O gênero me deu retorno: resultou no meu conto mais premiado até aqui, e as histórias estão sendo adotadas em muitas escolas.
Saindo do cenário rural e selvagem para o urbano, com autômatos robóticos, zepelins e monóculos com lentes para outras dimensões, Enéias Tavares transformou os personagens de algumas das principais obras da literatura brasileira em detetives do início do século XX.
IDENTIDADE ASSUMIDA
Na série de fantasia “Brasiliana Steampunk”, ele criou uma espécie de “Liga Extraordinária” nacional com o jornalista Isaías de Lima Barreto, a feiticeira Vitória Acauã, de Inglês de Sousa, e o trio do “Cortiço” de Aluísio Azevedo: Rita Baiana, Leónie e Pombinha, entre outros.
Professor de Letras da Universidade de Santa Maria (RS), Tavares quis exorcizar sua experiência frustrante de aluno de ensino médio tornando o estudo da literatura brasileira “mais instigante”. Em 2014, aproveitando o interesse editorial para as audiências jovens e a boa receptividade dos professores, lançou o primeiro livro da série, “A lição de anatomia do temível Doutor Louison”, uma trama de mistério com pitadas de fantasia, aventura e ficção cientifica.
— No Brasil, ainda há uma certo receio de assumir quem nós somos — avalia Tavares. — O Christopher, o Samir e eu fazemos parte de um grupo que resolveu assumir a ambientação nacional com peito estufado. Queremos interpretar o Brasil, divulgar nossas coisas. Muitos escritores do Brasil estão falando sobre Paris e Londres, o que é legal, mas também é importante valorizar a identidade nacional.
Fonte: OGlobo
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